quarta-feira, maio 06, 2009

Oh, não! Peguei uma gripe

"I am sitting on the sofa.
By the fire and staying in.
Me head is free of comfort
And me nose is free of skin
Me friends have run for cover,
They have left me pale and sick
With me pockets full of tissues
And me nostrils full of Vick."

"Estou sentado no sofá.
Junto à lareira e em casa
Minha cabeça dói sem parar
E meu nariz está sem pele
Meus amigos fugiram por proteção,
Deixaram-me pálido e doente
Com meus bolsos cheios de lenços
E minhas narinas cheias de Vick."

Primeira estrofe da poesia Pam Ayres, “Oh No - I Got A Cold”

Estou sentado no sofá de um restaurante – El Sombrero. Escrevo esse texto entre pork taquitos e quesadillas e cliques nas janelas abertas automaticamente pelo antivírus atualizado. Não há razão para pânico a menos que se dê um espirro.

Casos de gripe porcina se espalham pelo mundo. Já são 19 países afetados, 20, 21... A organização Mundial de Saúde (OMS) fala em pandemia de alerta 5, mas há pedidos que mudem para alerta 6. A sugestão dos franceses é que suspendam os vôos para o México, epicentro da epidemia. Eles tem autoridade? Bom, a gripe veio do México, mas a palavra gripe, do francês grippe, é francesa.

Os criadores de porcos não estão contentes; acham que chama-la de gripe suína é injusto. Minha sugestão é usar o velho vocábulo macaca. Receio apenas criar rusga com algum outro grupo de criadores. A OMS está com os criadores. Recomenda que o nome da doença mutante passe a gripe A. Mas gripe A é muito pouco para um vírus tão global. Já há 40 casos na Espanha. 41, 42... Espanhola, como os antigos chamavam a gripe, não funciona mais. Obsoletou. Os puristas usam a velha palavra italiana mais pesada pelo uso em outras desgraças – influenza, a qual faz parte de uma expressão maior: influenza della stagione – época que gripe era apenas influência de estação mais fria, o inverno. Gripe nos tempos da brilhantina. Resfriado. Podemos suavizar com o simpático diminutivo flu. Nada disso. A idéia é denominar pelos subtipos que possui, o local e o ano da coleta. Como em 1968: A/Hong Kong/03/68 (H3N2). Finalmente optou-se pelo intermediário gripe H1N1. Não confundir com a gripe aviária ou gripe do frango que é H5N1. Asiática. Assim como e crise, a gripe é fenômeno mundial. Uma esvazia os bolsos a outra os enche de lenços de papel. “Enviar para a lixeira”.

Em 1976 os estadunidenses criaram uma vacina com o fim de combater a gripe suína. Estima-se que mais pessoas morreram dos efeitos colaterais da gripe – a síndrome de Guillain-Barré – que da própria doença. “Excluir”.

No aeroporto o vai-e-vem de mascarados me deu a nítida impressão que Michael Jackson estava certo todo o tempo. Cada vôo é um perrengue. Olhei desconfiado ao redor. Abro um livro e para leitura de algum texto da era pré-reforma ortográfica. Machado de Assis:

Art. I - Dos Encatarrhoados - Os encatarrhoados podem entrar nos bonds, com a condição de não tossirem mais de trez vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro.

Quando a tosse for tão teimosa que não permita esta limitação, os encatarrhoados têem dous alvitres: - ou irem a pé, que é bom exercicio, ou metterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.

Os encatarrhoados que estiverem nas extremidades dos bancos devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no proprio bond, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçonico, vocação etc., etc.

(...)

Art. VI - Dos Perdigotos - Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo as occasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Tambem podem emittir-se na plataforma de traz, indo o passageiro ao pé do conductor, e a cara voltada para a rua.

Gripe não é coisa de hoje. Em 1918 a gripe espanhola, causada por uma das formas do H1N1, foi a mais devastadora pandemia dos tempos modernos. Estima-se que 40% do mundo ficou infectado e mais de 50 milhões de pessoas morreram. Em 1957 a gripe asiática, causada por uma forma humana do vírus, H2N2, combinada com outra, mutante encontrada nos patos selvagens, colheu 2 milhões de vidas. Em 1968, uma variante da gripe detectada inicialmente em Hong Kong conhecida como H3N2, matou um milhão de pessoas. O que poucos sabem é que a gripe comum mata todo ano de 250,000 a 500,000 pessoas ao redor do mundo. “Ignorar”.

Ameaça de pandemia nesse mundo globalizado resulta em, por exemplo, um jogo cujo objetivo é vacinar o maior número possível de porcos voadores em menos tempo http://www.swinefighter.com/. Talvez Roger Waters, Pink Floyd, seja profeta. Em Pigs On The Wing fala algo do tipo.

Se você não se importasse com o que me aconteceu,
E eu não me importasse com você
Andaríamos zigzagueando nosso caminho através do aborrecimento e dor
Ocasionalmente espiando por cima da chuva
Indagando qual dos vagabundos culpar
E assistindo os porcos voadores.


Mas ainda prefiro Pam Ayres:

"Medicinal discovery,
It moves in mighty leaps,
It leapt straight past the common cold
And gave it us for keeps.
Now I'm not a fussy woman,
There's no malice in me eye
But I wish that they could cure
The common cold. That's all. Goodbye."

Que é mais ou menos assim:

"O avanço dos remédios
Deu-se em passos largos.
Passou direto pela gripe comum
E a nós, deu-a para sempre.
Não sou mulher exigente,
Não há malícia nos olhos meus,
Mas desejava que tivessem curado
A gripe comum. É isso. Adeus."

Última estrofe da poesia Pam Ayres, “Oh No - I Got A Cold”
"Mover para a quarentena".
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segunda-feira, fevereiro 23, 2009

Dia de Faxina
 
Resolvi fazer uma limpeza em meu pequeno escritório; jogar fora coisas que não mais me serviam, colocar gavetas em ordem, me livrar da bagunça. Fiquei alarmado! O que essas revistas e jornais antigos que jamais iria ler novamente, santinhos de candidatos e convites para reuniões passadas faziam ali? Encontrei até mesmo, perdida entre os papéis, uma estratégia de arranjar, dispor e classificar meus objetos, documentos e informações que eu mesmo fiz e havia perdido.

Há pessoas que têm tremenda dificuldade em se livrar da bagunça por uma simples razão: bagunça é coisa difícil de definir. Bagunça é coisa. Coisa em cima da cama, embaixo dela; em cima do guarda-roupa, dentro dele; coisa na escrivaninha, no armário, no carro e em todo lugar. É aquilo que nos impede de realizar tarefas de maneira direta – estão no meio do caminho. Sei que é limpo, mas você é organizado? Ser organizado é ser capaz de encontrar coisas que desejamos quando quisermos.

Li em algum lugar que bagunceiros têm uma visão pobre da sua própria desordem: exatamete o que é mais desafiante nesse assunto.

Resolvi checar:
  1. Você recebe revistas e catálogos que nunca lê, mas guarda pois pode decidir fazê-lo?
  2. Criou uma pilha de coisas a serem lidas e lá no fundo sabe que poderá não ler nunca?
  3. Há coisas não atuais sobre a sua escrivaninha?
  4. Você vez ou outra procura documentos importantes, contas e papéis e não encontra?
  5. Você compra coisas que não precisa, com dinheiro que não tem, para impressionar pessoas que não gosta? (brincadeira).
  6. Você fica embaraçado quando recebe visitas inesperadas por conta da bagunça na casa ou escritório?
  7. Há lugares em sua casa ou trabalho que estão tão cheios de bagunça que teme por sua vida ao abrir?
  8. Já perdeu compromissos e reuniões por não ter uma agenda onde organiza os afazeres?
  9. Você já esqueceu a razão de alguém ter ligado, ou esqueceu de anotar o número ou esqueceu de retornar uma ligação por ter um sistema de mensagens deficiente (agenda, to do list, bloco de notas)?
  10. Você tem problemas para dizer NÃO?
Para terminar, uma citação de Don Aslett em Clutter's Last Stand:

"A vida começa de fato quando você descobre quão flexível e livre você é sem bagunça"
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segunda-feira, dezembro 22, 2008

João e Joaninha

"Um ser humano deve ser capaz de trocar uma fralda, planejar uma invasão, abater um porco, pilotar um barco, projetar um edifício, escrever um soneto, administrar contas, construir um muro, consertar um osso, confortar um luto, receber ordens, dar ordens, cooperar, agir sozinho, resolver equações, analisar um problema novo, espalhar adubo, programar um computador, cozinhar uma refeição saborosa, lutar eficientemente e morrer nobremente. Especialização é para insetos."
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quarta-feira, julho 09, 2008

O que você está lendo?


“Polônio: O que está lendo, meu Príncipe?
Hamlet: Palavras, palavras, palavras.”
William Shakespeare (1564-1616): Hamlet (1601)


Muitos amigos sempre vêm a mim com a pergunta “O que está lendo?” (dispenso o tratamento “príncipe”). Sou do tipo que lê compulsivamente. Aprecio livros, levo-os ao banheiro. Devoro não apenas o pão fermentado com cobertura açucarada. Gosto até mesmo de livros que foram escritos para não gostar. Aqueles asmos da sinceridade e da verdade. Quero crer que não sou raça em extinção, figurinha difícil. Você não tem a impressão que o número de bem-aventurados que são atraídos a algum tipo de leitura está em expansão? Eu acredito. Só me preocupa que tipo de livros esses leitores encontra e qual sua atitude ao fazê-lo.


Todos nos lembramos com trauma dos livros que fomos obrigados a ler. Samuel Johnson disse certa vez que um homem deve ler na medida em que sua inclinação o conduza; o que se lê por tarefa far-lhe-á pouco bem. Retiremos, portanto, os livros (bem como as bulas, manuais e letras miúdas dos contratos) que lemos por obrigação. Flip through.


Agora, escolher um livro pode ser tarefa penosa se partimos da proposta “escolha um autor como se escolhe um amigo”. Que amigo recomendaria, levaria à cabeceira, ao banheiro? Flávio Moura, diretor de programação da FLIP 2008 oferece uma solução: “A FLIP é cada vez mais uma chancela fundamental que orienta o que vale e o que não vale a pena ler”. Talvez um livro escrito com muito labor e zelo, vindo com sinceridade da alma de um autor. Será? Aldous Huxley (1894-1963) já advertiu que mesmo um livro ruim tem essas características. Você escolheria um “clássico”? Achei que era idéia minha a definição de “clássico”: livros que gostamos sem termos lido; Mark Twain (1835-1910) já havia falado coisa parecida. Fiquei decepcionado.


Deleitou-me, sim, Pierre Bayard, psicanalista e professor de literatura da Universidade de Paris. Bayard que falou com todas as letras na FLIP: “A apreciação de um livro não requer a sua leitura”. Ele é o autor de Como Falar dos Livros que não Lemos. I flipped out. Adorei esse livro. Clássico. Segundo li, Marcelo Coelho, crítico cultural, ao lado de Bayard, foi ainda mais longe (itálico meu): “Recebo muitos livros por semana por conta do meu blog. E tenho que confessar que acabo adotando a quinta essência da distorção jornalística: leio um ou dois parágrafos e faço a análise”. Flip lipped. Veja que talvez venha aí o segundo volume: Como Analisar Livros que não Lemos, com nota explicativa “A análise de um livro não requer a sua leitura”. Sou desconhecedor do método e me resguardo sob a égide de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834): “Até que entenda a ignorância de um escritor, julgue a si mesmo ignorante do seu conhecimento.”


Um erro, a meu ver, é encarar a leitura exclusivamente como fonte de entretenimento. Há, claro, os livros que foram escritos precisamente para esse fim, mas não se pode esperar sempre recreação ou passatempo quando se reconhece que muito da verdadeira literatura foi criada por grandes autores identificados como loucos, suicidas, heréticos, sonhadores, rebeldes e céticos, cujo objetivo ao escrever era nos impacientar e provocar nossa úlcera. Assim, tendo os grandes escritores a vocação da infelicidade, gostar ou não gostar do que se lê não pode ser o árbitro do que é um bom ou mau livro. ‘Gostar do que se lê’ é muito diferente de ‘gostar de ler’.


Ler não é apenas decifrar o código ou interpretar os signos. Ler requer inteligência. Captamos os dados e organizamos o que apreendemos. Exercitamos a capacidade de percepção e abstração e vivemos o que lemos. Há que se ter discernimento. Emocionamo-nos, evoluímos ao ler. Mas há aqueles que não lêem de jeito nenhum. O que a literatura pode fazer por estes? Um atalho? Li uma possível resposta na Newsweek: “O que a literatura pode e deve fazer é mudar as pessoas que ensinam as pessoas que não lêem” (A. S. Byatt, 5 de Junho de 1995). Mudar os mestres! Flip-flop.


Na FLIP era possível encontrar muita gente que gosta de ler - 35 mil espectadores. Além disso, com a presença de 40 autores convidados deveria ser fácil encontrar muitos que sofrem de cacoethes scribendi. Ao dar assim, de cara, com um autor sorridente, degustando seu flip, o que lhe perguntaria? Nem pense a antiga “quais são suas influências?” – ele já deve ter ouvido essa pergunta algumas dúzias de vezes nesse dia. Ele iria dar um flip-flop. Muito pior foi a proposta de certo jovem que encontrou James Joyce (1882-1941) em Zurique e flipped his lip : “posso beijar a mão daquele que escreveu Ulysses?” – veja que a tendência à veneração de ícones não é privilégio tupiniquim –. Sua resposta se seguiu igualmente reverenciosa: “Não. Ela (a mão que escreveu Ulysses) fez muitas outras coisas também”. Percebo que tais ameninades estranhamente se manifestam de vez em sempre ao encontramos escritores. Tendo sido antecipado por Twain na minha definição de “clássico”, arrisco mais uma tentativa de originalidade: ler é a arte de escolher uma má companhia. Não tenham os escritores e seus escritos em tão alta conta. Precisamos ler mais e com a desconfiança mais aguçada. Pela árvore se conhece os frutos. A quem porventura se oponha lembro que Lord Byron (1788-1824) foi acusado de incesto. Ele admirava Thomas Chatterton (1752-1770) que se matou aos 17. Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) era viciado em drogas. Edgar Allan Poe (1809-1849) era alcoólatra. Christopher Marlowe (1564-1593) foi esfaqueado por quem ele desejava esfaquear.


Lanço ao meu leitor a pergunta: O que está lendo, meu Príncipe?
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sábado, julho 05, 2008


Considerações de um Rabugento

Poblicado por mim no DigestivoCutural.Com

"...tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam, caem..."
Machado de Assis, no capítulo "O Senão Do Livro", de Memórias Póstumas de Brás Cubas

"Enquanto minha alma fazia estas reflexões, o outro ia indo por sua conta, e Deus sabe aonde ia!..."

Xavier de Maistre, em Viagem à roda do meu quarto



A destra tapa um bocejo enquanto a sinistra segura os comentários de Manuel Bandeira e Alfredo Bosi sobre Machado: "Nenhum escritor o sobrepuja na harmonia de todas as qualidades, que faz dele nosso clássico por excelência", "O ponto mais alto e mais equilibrado da prosa..." ― sempre achei os vendedores de enciclopédia geniais. Um perdigoto desequilibra e cai no caderno "Mais!" da Folha: 11 a 2 para Deus. Goleada! O embate não é novo. Machado já esteve no ringue com José de Alencar. Para não citar Tobias Barreto, esse outro pobre-diabo. Ouço Nessum Dorma e vou acordando com interrogações serpentinas: no jogo em que se disputa a posição de melhor escritor brasileiro, como se marca ponto? Quais as regras? Quem conta um conto aumenta um ponto? Quem pode ser juiz? O que se premia ao vencedor, rosas ou batatas?

O entusiasmo com que os jornais, revistas e leitores saúdam a recepção estrangeira a nossos autores não revela uma cultura literária em busca da legitimação ou apenas a tendência a genuflexão? "Woody Allen expressou sua admiração pelo autor de Dom Casmurro". Hip, hip hurra! Leu Epitaph for a Small Winner. Match point! Ora, o valor de Machado não caminha exatamente na contramão sendo ele mesmo antes leitor estrangeiro para então se tornar escritor nacional?

Machado mostra genialidade em alguns romances. Talvez três. Quatro? Certamente três. Até 1872 a obra de Machado de Assis era medíocre e de pobre conteúdo. Palavra do Senhor! A desconfiança e inquietação do autor estão reveladas no prefácio de Ressurreição (1872). Considera-se iniciante. Considera-lhe ensaio. Sua destra e sinistra seguram um coração que não sabe o que pensar da própria obra. Valendo-me de julgamento a posteriori dá para ser-lhe franco ― O romance é fraco, Machado; estilo e conteúdo desequilibrados. Faz bem em dar alguns passos para trás. Vade retro... Ei, Machado, espere! Pára! Não tanto! A Mão e a Luva (1874) e Helena (1876) saíram piores. Guiomar tem personalidade rasteira pincelada com traços trôpegos emoldurados em tela (ação) rota. Ponto sem nó. Há quem goste. Ai, ai. Iaiá. Os personagens desses dois livros são como personagens de novelas da tarde: vitoriosos embora sem trabalho, tendo futilidade como única ocupação. São imagem e semelhança das figuras típicas da época, como a luva é da mão.

Continue lendo aqui
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sábado, junho 21, 2008

Ser ou não ter?

Os ingleses têm Shakespeare, os franceses, Montaigne, os alemães, Nietzsche, os italianos, Leopardi. O que temos? Machado? O foco não é gostar ou não gostar. É ter! Como fazê-lo ícone máximo da literatura nacional? Será ele realmente nosso? - vide "Influências Inglesas em Machado de Assis" de Eugênio Gomes, livro de 1939. Influência estrangeira não coloca em xeque seu ESTILO como produto nacional para deleite dos ufanistas? Resta perguntar: suas idéias estão estritamente ligadas à língua portuguesa, ou seja, vale como critério sua HABILIDADE NA EXPLORAÇÃO DO VOCÁBULO? Nesse ponto está tão aquém de Guimarães Rosa que cessa toda tentativa de comparação.


Comentário que fiz do DigestivoCultural.Com
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sexta-feira, junho 20, 2008


Gallus Domesticus

Fiquei fora alguns dias. Olhei para dentro, gastei tempo escarafunchando lembranças antigas de quando eu era apenas um franganote.

Ocorreu-me Dona Tonha Feiticeira, aquela que morava, como eu, próximo à feirinha, perto da alfaiataria do meu avô. Na frente da sua casa estacionavam os galinhoteiros, os quais ela tentava expulsar amiúde com perdigotos e esguichos d’água de mangueira. Dias de algazarra e banho. Na grade verde e baixa do jardim da sua casa, meu segundo irmão, ainda frangote, foi derrubado de testa e ganhou seu primeiro grande galo.

Dona Tonha Feiticeira é da época que existiam galinhas. Hoje todos esses seres são chamados de frangos. Lá ia eu, seguindo-a casa adentro. Ela vestida como cigana: babados e cordões, pingentes e dentes dourados. Eu segurando uma galinha viva pelos pés conduzindo-a entre imagens, signos de Salomão e carrancas. A
carijó sabia de turmas inteiras que se transformara em passarinhos ou tulipas. Desde pintinho cria que poderia se tornar crispy chicken, Korean fried chicken, fricassê. Caipira, veio para cidade exatamente para ser imolada e se transformar no cozido com batatas do dia. Voltava da casa da Dona Tonha Feiticeira com a cabeça debaixo da asa.

Foi aí que aprendi o ofício a que era solicitado ao menos uma vez por semana por minha mãe: um pé prendia duas asas no chão. O outro, os pés
de galinha. Mão esquerda agarrava a cabeça com força. Arrancava penas do pescoço. Batia a faca e depois, com o fio, sangrava a danada esperando sua morte.

Fiquei introspectivo alguns dias. Olhei para fora e não perdi tempo. Aqui vou - entre o ovo e o vôo - tentando atravessar a rua para o lado ensolarado da calçada.
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